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RESENHA CRÍTICA DE GUSTAVO SILVEIRA RIBEIRO SOBRE "ODES A MAXIMIN", DE RICARDO DOMENECK

Atualizado: 21 de ago. de 2019



Cantarolares


A mistura de tempos e referências, o amálgama de corpos amantes, a indeterminação de limites e sentidos são alguns dos elementos que estão no centro do novo livro de poemas de Ricardo Domeneck, Odes a Maximin (Garupa, 2018), que se estrutura, em todos os seus níveis, como matéria impura, feita de reapropriações, intertextos, desejos disruptivos. Desde a capa, é possível observar que o livro se apresenta sob o signo duplo da hibridação: acima do título, de memória evidentemente classicizante – e disposto em caracteres sóbrios, letras brancas contra fundo azul – encontra-se um desenho ligeiro, de traços quase rudes, que mostra um homem nu lutando contra um enorme peixe. Apoiada sobre o animal, a figura humana tem os joelhos no chão, seus braços esticados procuram dominar a presa, o rosto está voltado para baixo. Nada nessa imagem sugere o equilíbrio e a estabilização das formas que a referência greco-latina mobiliza, nem mesmo há qualquer lembrança do universo pictórico ou da estatuária da Antiguidade. Ao contrário, o desenho do artista alemão David Schiesser é moderno, inquieto e descontínuo. As linhas que o constituem em nada se comunicam com os modos de composição clássicos, seu imaginário e procedimentos: é antes um desvio, cujas linhas remetem à paródia e ao universo da caricatura (conforme a sequência das imagens, disposta em meio aos poemas, revela). A convivência, no mesmo plano, dessas duas esferas de significação é uma síntese breve e efetiva da poética que se afirma e espraia no interior do volume. Observando-a, é possível distinguir a proximidade do arcaico e do contemporâneo, da elevação lírica e do humor auto-irônico, entre tantos outros pares opostos, que se encontram, nos versos de Domeneck, mesclados e quase indiscerníveis, postos, ao mesmo tempo, em tensão e em diálogo. Línguas, formas, sexos e culturas se tocam e se confundem nesses poemas, que oscilam entre contrários, equilibrando-se, extraindo sua força do material heteróclito que lhe serve de base.






As odes que o poeta escreve se sabem tardias e deslocadas. Pertencem a um tempo desencantado, cantam-se numa língua bárbara, entremeada de muitos outros idiomas, códigos e idioletos, fragmentos de linguagens costuradas com habilidade, sobrepostas umas às outras. A sua potência de invenção reside precisamente aí: a consciência da distância que o poeta mantém da tradição – de seus textos nucleares e das promessas particulares de cada gênero – faz com que ele os possa recuperar e repropor livremente, sem nenhum tipo de subserviência obediente nem de iconoclastia absoluta. Endereçando-se à tradição, remetendo os seus textos ao universo mental da poesia antiga, o poeta pode inscrevê-los, no presente, na temporalidade múltipla das sobrevivências e das reescritas, revelando o que há, na noção mesma de origem (da poesia, da civilização, do Ocidente), que vai implícita no aceno à cultura greco-latina, de impropriedade e incerteza. As suas odes, Domeneck parece afirmar, são tão compósitas quanto os seus referentes de Grécia e Roma, uma vez que, como tantas outras antes e depois, foram elas sociedades e culturas que se estabeleceram a partir do diálogo com o passado e da incorporação deliberada de modelos diversos, de padrões e hábitos e valores de outros povos, outras épocas.

Nesse sentido, a celebração que o poeta brasileiro faz da “fuzarca abençoada/de corpos após a Queda” (DOMENECK, 2018, p. 19) não se refere, como se verá, apenas ao contexto alemão e à liberação de fronteiras internas e externas que resultou num incremento de migração e emigração na Europa pós-1989. A elaboração eficaz do verso, que se interrompe justo na imagem da Queda (reservando o Muro à linha seguinte, num dos muitos enjambements do livro, um dos fundamentos técnicos mais bem explorados pelo poeta), coloca o leitor diante da ambiguidade do sentido e de referências míticas de outra extração – o Velho Testamento e a judeidade antiga –, que apontam para a mistura indiscernível de coisas que passou a definir o mundo dos homens, distinto, nesse sentido, da claridade ordenadora do Paraíso de que a humanidade fora expulsa, espaço edênico da separação e da hierarquia. A mistura de raças e procedências, referida no poema, é imagem que reúne em si não apenas o dado histórico imediato, mas serve também de baliza para todo o projeto que nas Odes a Maximin se consolida: esse é um livro de quedas, misturas, reendereçamentos, perversões.

A preponderância do erótico nos poemas de Domeneck (constante em outros livros, renovada com vigor neste último) ganha aqui mais uma camada de sentido, por assim dizer. Porque não se trata, no livro, tão somente de celebrar a beleza e as virtudes amorosas de M., o “divino rapaz” (DOMENECK, 2018, p. 19) que o poeta esconderá sob o nome de Maximin, em referência a um dos mitos poéticos cultuados pelo escritor alemão Stefan George e seu círculo de interlocutores. Erguido em torno às odes, essa tarefa jubilosa, de alta voltagem sexual, o dado erótico atravessa o conjunto dos poemas irá vindicar também, no mesmo passo, a miscigenação e a multiplicidade incontrolável das heranças, a liberdade dos encontros homoafetivos (furtivos ou não), os modos subversivos que o desejo tem de ampliar a vida e desfazer as tramas unívocas do poder, opondo-se a fronteiras, nacionalidades e proeminências coloniais. Afirmando a sua condição estrangeira, a um só tempo de imigrante latino-americano e de poeta menor, que escreve numa língua periférica e quase desconhecida, Domeneck conhece, no entanto, a sua ambígua condição. Ainda que, conforme afirma, “sou meteco/não grego/são esparsos/os meus privilégios” (DOMENECK, 2018, p. 21), a possibilidade do canto desestabiliza o jogo, já que coloca o sujeito poético em condição de fazer das canções amorosas lugar de reflexão sobre a dignidade das letras (seu diminuto arsenal) diante das imposições violentas da História. Essas mesmas canções, nas intrincadas linhas sonoras e imaginativas que as constituem, deixam perceber o coeficiente político de tudo o que é erótico, na medida em que, se Eros é desmedida e indeterminação, tudo o que passa pelo seu espectro desorganiza as formas do controle, destrói os laços que mantêm os indivíduos (e as comunidades) retirados e imunes, fechados sobre si, em identidades estéreis. Se o erotismo é capaz de virar pelo avesso a gramática e a lógica, como tantos outros poetas já mostraram, Domeneck lembra que Eros subverte a ordem da pólis, já que possibilita, a seu modo, que cantores estrangeiros (metade bárbaros, metade cidadãos) – parte dos sans-papiers, esses que “advém/eles também/de gentes/ por séculos/sem/passaporte?” (DOMENECK, 2018, p. 85) –, possam, como amantes, momentaneamente tomar o lugar que por direito pertenceria às jovens esposas, genitoras potenciais de uma nova geração e guadiãs, ao fim e ao cabo, do arranjo imutável dos estamentos do Estado, da ordem natural das coisas. O chamado que o poeta faz à descolonização, convocando o amante “teutojudeujudoca” (DOMENECK, 2018, p. 87) a participar de uma orgia de línguas e sexos passa igualmente por aí.

Uma das forças fundamentais do livro, o erotismo é a senha de passagem do um ao outro, do uno ao múltiplo. Se a mistura, como já se disse, ocupa lugar privilegiado na feitura dos poemas, isso se dá principalmente pela representação do sexo e do amor. Lembrado, imaginado, buscado com ardor, o corpo do parceiro é a porta aberta para a saída de si, para o indeterminado da experiência erótica que interrompe, pelo tempo suspenso do desejo, o fio da identidade: o eu se esvazia, quer fazer-se todo porosidade [“Quantas vezes pedi a orixás e santos/Maximin, fazer de mim todo ânus” (DOMENECK, 2018, p. 97)], ser tão só um servo do objeto de seu tesão; e até depois de morto, enfim, o poeta quer ter o coração inerme do rapaz voltado para si: “Só peço: a oeste do teu torso/para que dessarte o teu miocárdio ao menos/aponte em flecha na direção dos meus restos” (DOMENECK, 2018, p. 45). Um verso em especial, dentre tantos exemplos possíveis, concentra, em nível semântico, sintático e até morfológico, esse impulso fusional, a vontade de possuir e pertencer, a um só tempo, (a)o amante. O trecho, colhido no poema que abre as Odes a Maximin, precisa, para ser melhor compreendido, de uma certa moldura, o verso que lhe vem antes e os que estão postos logo depois:


Minimiza minha idade,

mexe-me contigo em mim,

tantas são, miríade,

as posições possíveis

entre cavalgadura

e montaria [...]

(DOMENECK, 2018, p. 18; grifo nosso)


A ânsia de ultrapassar a própria pele (de tê-la atravessada) manifesta-se, antes de tudo, como uma forma de desconcerto da linguagem. O poeta, nesse passo, ignora os contornos do mundo e formula, num misto de súplica e comando – que é também um jogo de palavras com o nome do amante – a demanda ilimitada: “mexe-me contigo em mim”. Verso de ritmo e corte precisos, ele se estrutura na delicadeza das sílabas que oscilam entre o M e o N e procura desfazer, pela sua força paradoxal, a inteireza do eu que o enuncia. Seja pelo arranjo sonoro criado pela melodia, seja pela proximidade quase indiscernível dos corpos que, conforme sugere a imagem, se imbricam e deslimitam, o sujeito da escrita busca desconhecer-se, uma vez que penetra e é penetrado, é conteúdo e continente ao mesmo tempo. O desejo ambíguo de ser trespassado e assimilado por Maximin passa também pelo verso anterior, no qual o poeta pede que o amante retenha a passagem dos anos e faça o tempo voltar atrás. O jogo de contrários proposto a partir do nome próprio, Maximin, confere densidade adicional às súplicas, já que revela desejo de ser o outro, ter a sua idade, habitar o seu corpo. Mais do que recuperar um punhado de referências à cultura clássica (segundo a qual a convivência amorosa entre um homem adulto e um adolescente era marcada, muitas vezes, por uma aguda e trágica consciência do peso dos anos e das angústias que eles carregam consigo), os versos de Domeneck propõem também reflexão sobre outros sentidos da experiência erótica, que para o poeta vão combinar, incontornavelmente, a dor e o gozo, a ferida narcísica e o gesto expansivo de uma vida que se quer múltipla, irrestrita.

Aspecto igualmente importante no conjunto geral das Odes a Maximin, a relação entre poesia e homoerotismo se deixa ver em praticamente todo o livro, perceptível desde o título. Afinal, sem Maximin e sua “belezura berbere”, não existiriam as odes. Sem a pujança das visitas intermitentes e a memória do seu prazer, não haveria a celebração dos poemas, às vezes feita de força alegre, às vezes vazada em ironia agridoce. As odes existem, sobretudo, para monumentalizar o instante, que aqui é ainda mais fugaz posto que clandestino, oculto sob o anonimato da metrópole (Berlim) e os disfarces dessas ficções do enamoramento que são, enfim, as máscaras amorosas que o poeta forja. Mas, para além de todas as celebrações da virilidade e dos interstícios do amante, a operação que irá soldar de modo mais preciso a afetividade desviante do universo queer e a fatura da poesia lírica se dará numa peça curta, talvez despretensiosa do ponto de vista formal, mas bastante significativa para a poética que Ricardo Domeneck vem desdobrando diante de seus leitores, tanto nas Odes quanto em outros de seus livros (com destaque para Ciclo do amante substituível, 2012, e Medir com as próprias mãos a febre, 2014).


Os cantores antes de mim

Como aquele Oscar de Londres

e suas odes a Bosie.

Como Constantino de Alexandria

e seus cantares a anônimos.

Como o tal Pedro de Casarsa

e seus hinos ao Ninetto.

Ou até certo Ricardo de Bebedouro

obcecado com o Moço,

tudo o que quero, Maximin,

é cantarolar-te.

Tira de sobre as tuas orelhas

esses cachos.

Escuta. Aplaude.

(DOMENECK, 2018, p. 43)


O poeta se insere numa tradição particular, como se vê, agora tratando de nomear os pares com quem sabe estar dialogando. Como Dante na Comédia, que traz para junto de si Virgílio e faz dele guia da travessia sinuosa do Inferno e do Purgatório, Domeneck se aproxima de uma constelação de poetas modernos que, como ele, fizeram convergir em suas obras o passado remoto, com seus ecos gregos, e a vida contemporânea, numa mistura anacrônica de tempos e mitos. São poetas do desejo, todos eles, marcados pela paixão homoerótica que definirá, num certo sentido, os seus versos e as suas vidas. Os três, Oscar Wilde (1854 - 1900), Konstantinos Kaváfis (1863 - 1933) e Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975), foram também tocados pela violência moralizante e reacionária de seu tempo que, em razão de seus textos e amores gay, a um levou ao cárcere e à ruína; a outro obrigou a uma espécie de silêncio melancólico, feito de renúncia e recolhimento; ao terceiro, por fim, trouxe a morte brutal, perpetrada por assassinos que mutilaram o seu corpo, dilacerando-o de modo atroz. Ainda como Dante, o poeta brasileiro se inscreve nesse grupo de espectros sabendo-se pequeno, mas ainda assim digno da companhia elegida. Tanto é que Domeneck inclui-se duas vezes nessa linhagem, já que, junto aos poetas mencionados, figura também um certo “Ricardo de Bebedouro/obcecado com o Moço”, numa referência a si mesmo que dobra a aposta da identificação projetiva e confirma a necessidade de, nesses poemas, outrar-se, reinventar a sua voz, “escorraçar/os fantasmas/de natais passados” (DOMENECK, 2018, p. 13; grifos do autor). 

Num ato criativo soberbo e humilde, o poeta inclui-se nesse cânone desviante, no mesmo momento em que, assinalando a sua condição aprendiz, diz “cantarolar”, sem nenhuma grandiloquência, as suas odes, em escolha verbal precisa, na qual se lê tanto uma vênia aos mestres quanto um modo de atualização, em contexto nacional e ordinário, da grandeza das referências mobilizadas – nesse sentido, sua destreza lembra a de Oswald de Andrade, que num imenso e esplêndido poema de amor, fez descer à rua e ao trópico os Cantares de Salomão, acrescentando-lhes a instrumentação brasileira e popular: “Cântico dos cânticos para flauta e violão” (1942). E há mais: o poema em tela, enumerando cantores e sua procedência territorial, remete o leitor atento ao universo dos trovadores e do Medievo europeu, numa nova volta do tempo sobre si. Os líricos gregos antigos, os poetas-itinerantes do amor cortês e do trobar clus, os artífices modernos de uma poesia intempestiva, escrita nos últimos dois séculos – todas essas referências e todas essas épocas vêm se imiscuir no poema de Domeneck, ampliando a esfera dos diálogos sustentados pelo poeta (e que deve incluir também, nesse livro tão onívoro e multitudinário, nomes como os de Walt Whitman, Hilda Hilst, poetas árabes antigos e cantoras kuikuro), que de todos eles se apropria e a cada um deles se endereça, numa reproposição contínua de formas e sentidos.

Falsamente apresentado como “arte povera” (DOMENECK, 2018, p. 49), as Odes a Maximin, ao contrário, pertencem a um poeta muito cheio de recursos, cioso da sua técnica e das inúmeras histórias do seu ofício. Feitos tantas vezes com retalhos de leituras e oralidades várias, os poemas de Ricardo Domeneck são capazes de emular a forma modelar dos clássicos, com suas convenções e decoros, assim como se revelam sempre prontos a saltar sobre os escombros da tradição e organizar, a partir de seus detritos, novas possibilidades expressivas, novos modos de pensar o mundo que nascem, ou podem nascer, da contemplação “dos músculos fartos” (DOMENECK, 2018, p. 45) de um jovem mestiço. O canto ligeiro e a meia voz do poeta (‘cantarolar’ não quer dizer, nesse contexto, outra coisa) não se entrega fácil, pois esconde, mais do que revela ao primeiro olhar, a dimensão de sua força.

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