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editando a coleção a galope: uma conversa sobre a poesia e seus demônios







Quem se envolve passionalmente com a escrita de poesia cai em uns buracos que sequer consegue entender. E tentar entender é, muitas vezes, um exercício vazio de senso (uma tentativa frustrada de criar um juízo) sobre todos os problemas que a poesia traz para a nossa vida. Sim, problemas. A gente se acostumou a viver no meio desses cruzamentos incidentes de problemas. Eles surgem o tempo todo. Eles atrapalham o nosso dia. Incomodam. Chegam sempre na hora mais inesperada. Nessa conversa, se imaginamos uma frase de para-choque que resuma a questão – frases de caminhão são ótimas para sintetizar grandes questões da vida – ela diria que poesia não é coisa boa. Que nos perdoem os textos bondosos, mas felizmente não trabalhamos com eles. A poesia não tem nada de benevolente. Pelo menos não esta da qual queremos falar.

Um falso cognato do espanhol pode ajudar ainda mais. Por alguma ironia, a expressão mala poesía, que pra gente quer dizer diretamente poesia ruim, sugere sentidos semânticos bem mais alargados, se os deixamos falar. Mala poesía parece carregar alguma atitude que poesia não suporta, não aguenta. Principalmente porque, na nossa cabeça, uma tradução mais afim dessa atitude, dessa marra, deveria ser algo como poesia malvada, poesia má. Essa indicação brinca com o cânone e com o gosto. Afirmar uma posição para a poesia má tem como consequência afirmar uma posição para o ruído. É preciso machucar a beleza permanente. É por aí que a provocação da edição como abertura para a própria noção de poesia parece inflexionar. A poesia má quer apenas existir, quer dizer, é apenas vontade, sem técnica. Afasta a escrita de seu uso corrente – e também das caixas da forma poética – para dar lugar a um espasmo. Assim, nos jogamos todos de ponta cabeça. Somos sugados por essa vibração. E ao mesmo tempo que sabemos dela, a revelamos em nós. Nos tornamos ruído. Não queremos soar arrogantes quando dizemos que editamos com a bandeira da atitude, e não da formação. Que queremos justamente a marra. Que queremos a poesia má.

Se dissermos que todo leitor de poesia é problemático, que toda leitora de poesia é problemática, muitos de vocês vão dizer que estamos reforçando um clichê. Mas pensem bem se problemática não é uma pecha que nos cabe. Sejamos francos. É sim. É justamente por sermos leitores problemáticos que estamos aqui. E nessa sala, só tem a gente. Nós somos os viciados em problemas. É por isso que andamos juntos e que nos encontramos: somos fregueses da mesma fissura. E se lidamos aqui francamente com algumas verdades, esta nos apega: a leitura de poesia acontece a pleno vapor, é uma energia que não se perde, e nem se acumula, que muitas vezes acontece apesar. A gente consegue sentir a coisa acontecendo. E não precisamos de números para isso. Não queremos saber quantos somos. Quando editamos poesia – e aqui começamos a falar também do trabalho na coleção a galope – sentimos que o que fazemos na verdade é jogar lenha nessa fogueira de problemas. Estes sim sabemos ser incontáveis.

Editar poesia não tem apenas a missão do registro de imagens e discursos que a História não se interessaria. Ao largo, acrescenta à babel dos arquivos o rio caudaloso que, sem colete salva-vidas e cansados de tanto nadar, atravessamos sob cada desgraça. Cá estamos decididamente colaborando para colocar a poesia má na gira das leituras da poesia brasileira contemporânea. Vivendo puramente o infortúnio coletivo. Celebrando um azar gostoso de mexer.

Se também nos aventuramos no varejo de livros, vejam vocês, carregamos cada natal de nossos sofrimentos para onde vamos. Não é a clareza de nossa função como implicadores de problemas que fará com que, por conseguinte, nos afastemos dessa sina: Carlito Azevedo, quando falou sobre a edição de poesia, disse algo muito precioso sobre essa sucessão de sustos que os editores fazem surgir dos impressos, disse ele uma vez que para editar bem poesia é preciso aceitar a antimercadoria; uma expressão, assim nos parece, certeira. Por mais que poesia constitua dentro do mercado editorial uma fatia de consumo, os livros de poesia não conseguem fazer a leitura transitar de um para o outro como, por exemplo, as ficções água com açúcar. Por mais que haja leitores de poesia formados, cada livro de poesia é um novo filão de mercado. Diferentemente dos leitores de ficção água com açúcar que consomem muitos lançamentos, os leitores de poesia gostam de arcaísmos. Os lançamentos nem sempre importam porque a poesia não é exatamente uma força morredoura – embora muitas vezes pareça se comportar assim. É preciso entender que os lançamentos de poesia não “concorrem” uns com os outros; os lançamentos de poesia concorrem com toda a poesia editada e disponível. É muita coisa. Para que a atividade de editar poesia persevere, é preciso aceitar a antimercadoria como se aceita uma maldição.




Uma maldição, lembramos, de papel. A antimercadoria lida também com o fato de que o livro de poesia circula não apenas de mão em mão como também de tela em tela. É preciso dizer que, da mesma maneira com que afirmamos que há 3 mil anos edita-se livros, também afirmamos que há apenas dez edita-se livros no tempo real, na temporalidade da internet de massa. As consequências da circulação randômica de textos mudaram completamente a experiência da leitura – e tornaram o livro impresso uma estranheza lenta que nos encanta. O interesse na página não decai frente suas simulações concorrentes. Para perceber isso, precisamos prestar mais atenção nos planos que puxam nosso olhar. É assim que voltamos sempre às páginas. Sua fixidez ainda nos admira e nos dá prazer. O curioso gesto de postar impressos com textos nas redes, outra vez, não nos deixa mentir. O impresso puxa os olhos. O empuxo da atenção acontece como um chamado, uma convocação. Dos olhos, para a voz. A leitura não é exatamente pela informação. Ela chega, entra e corre nas veias. Apressa a respiração e dilata as pupilas. Para dar novas páginas à poesia editada e disponível, a coleção a galope media a seguinte proposta de contato: um livro de cerca de 40 páginas, impressão p&b e costurado à máquina. Um susto. Ao seu modo, a coleção responde ao imediatismo – das telas, inclusive, ademais da emergência política. Entendemos que papel e tela participam da luta; não são inimigas, pelo contrário, reassumem as afirmações de vida que compomos na realização do trabalho.

É por esse tipo de pegada de como editar que sentimos que nossos livros se mantêm interessantes diante da tela de led. Isso se nos atemos à mágica do uso. No consumo da leitura, os livros fazem som. Quando lidos, ganham voz, respiram junto com a gente. Pulam em cima. Mundanizam-se. Texto e voz resultam no produto que buscamos alcançar. Tem que ser cantado. Aberto e reaberto. Lido e relido. Os textos são distribuídos para serem redistribuídos pela voz. É assim que convivemos com eles no dia a dia. Principalmente quando estamos lidando com a poesia má. Quando o mundo ao redor se mostra e não entendemos bem seus contornos. Quando o som nos assombra pela intimidade e acolhimento, nos colocando numa crise de dúvida e descoberta. Somente a antimercadoria é capaz de tocar o mundo dessa maneira, apenas seu acontecimento sem igual é capaz de substituir a medida das coisas, ousar grandezas, por dentro da maneira com a qual falamos e ouvimos, por dentro da maneira com a qual imaginamos uma fala, um canto, e especulamos sobre sua vibração. A poesia tem essa capacidade de nos deixar elásticos, porque falamos numa voz que não é nossa. Nos tornamos, pelo som, um tipo de matéria fluida. Um corpo incorporado.

Essas pontas soltas da leitura incidem na edição de maneira dramática. Latinoamericanamente dramática. A intensidade da poesia má e a instabilidade da antimercadoria criam uma zona de entrega de corações que fazem a máquina editorial rodar imersa no drama. É assim que pensamos compor uma realidade paralela que se abre por dentro da eliminação das formas de vida. Eliminação que é contornada (e denunciada) pela exuberância da poesia. É necessário que haja esse campo discursivamente clandestino, e comercialmente desvalido, para que certa força surja na superfície do capitalismo vigilante, e passe então a dialogar com igualdade de condição – ao menos diante do leitor, mesmo que apenas um leitor – com o amplo cartel de catástrofes, de sacrifícios e de indigências que parecem constituir os alicerces eternos do Brasil. O poema não pode ser outra coisa que não uma ferrugem no metal valioso e provinciano, não apenas por vocação de suas inspirações mais altivas, mas pela própria condição pela qual o mundo material recebe seus procedimentos e intenções. Todos os pontos que passamos aqui nos ajudam a afirmar essa craca grudenta a qual podemos apelidar de triunfo da precariedade.

Contudo, a realidade paralela em projeção não está plainando isolada num vazio, pelo contrário, viaja em velocidade acelerada, colidindo abruptamente com qualquer coisa que nela toque. A poesia má é um tsunami. A cada passagem, ela definha a disciplina da poesia. Quanto mais imprevisível, mais mordaz.

Esse corte nas dimensões da sobrevivência não paga tributos a quem desdenha de suas vitórias. Pois elas simplesmente acontecem. A manifestação do texto empresta aos poemas os arranjos puídos da literatura, num movimento que parece se deslocar do tempo histórico como uma revolta torta. A poesia não ganha nada quando deixa de se entender como uma esquisitice. Pelo contrário, quando tenta disfarçar seu andar desengonçado recai na brevidade das facilidades, nas distrações do entretenimento ou na reiteração das formas canônicas. Esse tipo de coisa que não faz a mão coçar e nem inspira amores. Talvez seja o toque da estranheza a sua justeza política, o que faz da edição de poesia algo tão viciante e enigmático – o maravilhoso é essa coisa que não sabemos que coisa é, estamos maravilhados quando estamos tomados pelo incompreendido, quando nos sentimos retirados de nossa mesmice comezinha. É na busca por se conhecer que se conhece. Damos voltas com nossas memórias e nossas vontades. Revemos os erros. Prevemos se poderemos acertar, quando sem planos nem avisos, nos vingarmos da última guerra e criarmos um desencaixe. A violência dessa devassidão é percebida na ponta dos dedos. A revolta torta é a mais pura das tensões da poesia má. Tem força inaugural. Faz abrir o chão da Terra. Caem as cercas. Caem as grades.


Não, não, não. Isso tudo está assertivo demais. Nós temos nossas dúvidas. E para editar poesia, é importante ter essas dúvidas, ter nossas incertezas. Sim, e dramas, eventualmente. Latinoamericanamente dramático. Mas, principalmente, dar corda às incertezas. E conviver com muitas incertezas pode ser perigoso. Por isso, duas cabeças discordantes têm chances de fazer esse trabalho melhor do que uma. Vamos, portanto, discordar de nós mesmos. Aqui, isso tudo estava assertivo demais.

Nessa noção de mala poesía há também o falso cognato poesia mala. No sentido de maleta, bagagem, mas principalmente da gíria, como em “esse cara é um mala”. Gíria um pouco velha, mas ainda em uso. E se tem um estigma que os círculos dos que não se envolvem passionalmente com a escrita têm da poesia é que ela é justamente isso: chata, coisa de gente mala. Daí não achamos que mala poesía realmente ajude a pensar o que fazemos na coleção a galope. A poesia pode até ser chata, mas também pode não ser. Cabe a ela e aos leitores decidir o que ela é ou não é.



mesa de lançamento do primeiro bloco da coleção, que aconteceu no espaço cultural Olho da Rua, no Rio de Janeiro, em setembro de 2019.


Também não faz sentido pensar uma poesia má, marrenta, nos termos de um espasmo, algo sem técnica. Isso não soa inocente? Alguma querela entre, por um lado, a poesia que, apostando no verso livre etc., ainda investiga formalmente seus limites, ou então que recorre a procedimentos específicos em sua construção formal; e, por outro lado, uma poesia que expressa um desejo de se afastar dessa preocupação, sendo supostamente mais visceral, talvez mais próxima a uma escrita automática, me parece uma querela superada. Ao menos superada no processo de edição da galope. Não sabemos se há necessariamente um espasmo aqui. Veja bem: o que seria pensar a poesia como uma contração involuntária, não ritmada, podendo ocorrer isolada ou continuamente, sendo dolorosa ou não?

Uma poesia que não é benevolente: isso sim é um ponto de encontro. Afinal, alguns poemas da coleção são ritmados. Outros, investigam a seriação, procedimento queridinho do nosso tempo. Alguns poemas caminham em direção à prosa. Outros, em direção à música. Outros, ainda, são técnicas de respiração. Inspire. Conte até três. Expire. Ou são modos de organizar nossa revolta política: manuais de técnicas revolucionárias. Há os poemas que são diários. E bons diários têm técnica sim. Podem não seguir um manual, mas têm técnica. Na hora de pensar poesia não rola abandonar a língua. Ela é feita na e para a língua. Em alguma medida, sempre haverá técnica, mesmo que usada instintivamente.

O poema é um espaço privilegiado para pensar e fazer cultura. Nele cabe muita coisa. O rap é poema. O cordel é poema. Um roteiro de cinema pode ser poema. Uma canção cabe muito bem em um livro de poemas. Viva Torquato Neto! Um grevista sobe no palanque do sindicato e lá vai poema. Cartaz, panfleto, spotify: tudo mídia pra poema. Porque ele é, por excelência, espaço onde se investiga a linguagem. E aí vale tudo. Sim, vale tudo. Menos benevolência, nisso temos que concordar.

Talvez também aí esteja o caráter antimercadológico de um livro de poemas. Talvez sua falta de benevolência diante do estado das coisas seja sua potência, e essa potência repouse também em um estado de antimercadoria. Porque o deslocamento que o poema opera no status quo não é um deslocamento qualquer. Há um desvio que a poesia, apenas por ser poesia e não outra coisa, impõe. É ele que transforma aquilo em poema e não em contra coisa. O desvio que se dá quando o poema obriga pausas aos discursos. Quando a poesia nos convida a olhar de novo para as coisas. Leio e releio um poema. O poema resiste ao sentido e assim faz o sentido resistir a si mesmo. Um mundo que exija menos sentido: é disso que estamos falando.

Por exemplo: um salão de cabeleireiro em um poema já não é apenas um salão de cabeleireiro. Ele traz consigo o terreno onde foi construído, seus tijolos, a data de sua inauguração, a mão de obra que o ergueu, e aquela que nele trabalha dia após dia, o bairro onde está situado. Ou não. Ou nada disso. Talvez com ele venha apenas sua grafia: ca-be-lei-rei-ro. Espalhamos as letras na página e elas revelam um rei, ou uma lei arbitrária, um lero na calçada, um calo nos pés.

Por exemplo: um salão de cabeleireiro é observado por um eu lírico feminino. Ela é casada ou solteira? Ela se sente presa aos trabalhos domésticos ou se livrou desse grilhão? Ela se sente bem? Se permite pegar sol para secar os cabelos? A mulher do poema transforma o salão que ela observa toda vez que transforma a si mesma. Nós transformamos a mulher do poema e nos transformamos com a mulher do poema toda vez que ela olha o salão de cabeleireiro. Um salão de cabeleireiro em um poema é e não é um salão de cabeleireiro.

Mas agora os salões da nossa cidade estão fechando. Grandes cadeias substituem pequenos negócios. Formas de vida estão se extinguindo. O ecocídio corre a todo vapor. Ele decola com Jeff Bezos a bordo. Mas não no pequeno livro da galope, costurado à máquina, quarenta páginas apenas. Um livro laminado e sem nenhuma cola em sua encadernação. Um objeto durável (afinal, é a cola das brochuras que convida traças e baratas). Assustadoramente durável se bem conservado. Um objeto que resiste a maior parte das novas tecnologias, dura mais que um macbook, que uma smart tv, que um móvel tokstok. Mais do que aquele toca-fitas que herdamos sabemos lá de quem ou que certa vez vimos no shopping chão no centro da cidade. Ele durará mais que nós, editores. Mais que os autores do livro. E daqui a bons anos, em algum sebo – se ainda existirem sebos – lá estará um salão de cabeleireiro. Um livro é o mais eficiente arquivo da humanidade. E ele consegue fazer isso sem causar grandes estragos.

Não é bem um tsunami. Mas faz alguma diferença. Ao menos nas comunidades imediatamente relacionadas a eles. E isso é o suficiente. Para um livro de poemas, não faz sentido ser muito ambicioso. Ele não é um tsunami.

A coleção a galope traz pequenos livros de poemas, pequenas sugestões de desvio. Nenhum deles é benevolente. A princípio, ela não passa de um espaço de troca entre nós seus editores, Juliana e Thadeu, e alguns dos autores que achamos importante publicar. Nosso delírio é tornar público – e fazer chegar ao maior número de pessoas possível – vozes que estranham o mundo. Pontos de vista, referências, ritmos e dicções dissonantes. O desejo é que elas consigam reposicionar os sentidos de algumas coisas, deslocar as assertivas. Não é um tsunami, mas pode faz alguma diferença. Podem nos chamar de românticos, tudo bem. Ainda é tempo de algum romantismo.

A beleza nisso tudo é que, para fazermos isso, para publicarmos a galope, não precisamos de justificativas – essas armadilhas do mundo. As coleções de livro, assim como as antologias, quando não tem um motivo temático ou cronológico muito claro, sempre se justificam de um jeito meio doido: “as principais vozes desse tempo”, “a poesia da nova geração”. É sério isso? Ninguém merece.

Sentimos apenas que precisamos convidar os leitores, vocês, para mais perto do que estamos pensando nesse momento. Para que conheçam nossas incertezas. Esse texto é o nosso convite.


Esse texto foi escrito pelos dois editores da coleção a galope, Juliana Travassos e Thadeu Santos. Se essa maluquice fez algum sentido para você, conheça mais o projeto aqui.

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